domingo, 6 de dezembro de 2009

Falsa Perfeição

Aquele lugar estava isento de pecados. As pessoas eram completamente altruístas e o amor ao próximo estava acima de tudo. Os pobres não reclamavam de suas condições e todos conviviam em perfeita harmonia. Se a criança chorava a noite inteira, cuidar dela era uma obrigação, e não haviam queixas sobre tal. Se alguém esbarrara-se contra você na rua, um pedido de desculpas era perfeitamente aceito, e os sorrisos não saíam de seus rostos. Ninguém passava por cima de ninguém, e todos eram felizes.

Todos eram felizes. Felizes. Felizes. Felizes...

O sorriso em seus rostos era como uma careta que não se desfaz. O coração daquelas pessoas assustadoramente sorridentes era escuro e sombrio, invisível aos olhos. A verdade dentro daqueles corações era rígida e reprimida.

Na feira, alguém gritou. Um homem corria incessantemente, com algumas frutas nas mãos. Não queria passar mais fome. No quarto daquele casal perfeito, o bebê chorou. E chorou ainda mais quando sua mãe lhe deu um tapa na face rechonchuda. O homem com as frutas esbarrara-se fortemente contra um senhor na rua, e não teve tempo para desculpar-se. O senhor virou-se em sua direção e apertou os punhos. Naquela noite, o ladrão de frutas seria agredido seriamente pelo senhor. E o melhor amigo do senhor informaria a todos o que ele havia feito, ganhando assim fama de benfeitor.

As faces sorridentes tornaram-se rostos sem expressão e o ódio era claramente visto em seus olhos. A verdade veio à tona, os desejos pecaminosos se libertaram. Os sorrisos forçados sumiram por completo.

Todos eram humanos. Humanos. Humanos. Humanos...

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Solitária Dor

A melodia enchia os ouvidos da garota de pijama que fitava o chão. Tossiu. Mil coisas se passavam pela sua cabeça e uma dor oca apertava seu peito. Tossiu mais uma vez. E então, seu rosto se contorceu em uma careta. E as lágrimas brotaram. Deixou-as brotarem e escorrerem por suas faces, na verdade, depois de algum tempo guardando-as. “Eu vou superar”, ela prometeu. Mas não podia fingir para ela mesma. No dia seguinte, teria de encarar o sol, procurar um chão – por onde ele andava esses últimos tempos? –, sorrir para as pessoas mesmo sem vontade de fazê-lo, fingindo estar tudo bem. Mas, estando só, precisava ser verdadeira. E a verdade era que a lágrimas estavam lutando contra ela e precisava libertá-las. Ao menos enquanto estivesse só, onde ninguém pudesse ver. “Uma hora elas terão de secar”, pensava. E então chorou, gemendo baixo. Teria longos dias pela frente. Sim, longos e vazios dias. E talvez ela se perguntasse pelo que vivia, mas continuava, porque sabia que o vazio seria preenchido e tudo ficaria bem. Sim, sim.

domingo, 1 de novembro de 2009

Constante

Eu sentia sua presença. Todo dia, quando acordo, sinto sua presença ao meu lado, na cama. As lágrimas já secaram, mas sua presença ainda está aqui. Não me dói mais, é até reconfortante. Você se foi, mas seu sorriso e o calor que emana dele é eterno.

- Bom dia – saudei aquela foto radiante, ao lado do recipiente de porcelana que contém suas cinzas. Foi só o que sobrou da sua carne, mas a sua presença... ah, ela continua tão intensa quanto no passado.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Sentimento Literário

O que a gente sente
Depois eu te conto
Depois você me fábula
Depois a gente romance.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Doce Esquisitisse

Ela estava sentada na carteira do fundo da sala, perdida em devaneios inúteis. A aula corria e praticamente todos os alunos prestavam atenção. Era uma matéria importante, afinal. Mas a mente dela estava perdida em uma floresta de sentimentos e pensamentos: o que faria no fim de semana, o que comeria no almoço, como passaria de ano, aquela foto engraçada, aquelas mãos entrelaçadas, o exercício que não fez, o livro que queria escrever e a música que só sabia o refrão. Cantarolava sem perceber, e desenhava olhos na mesa. Ria sozinha de suas lembranças e ignorava todo o resto.
Acordara por um momento, pegando no ar uma discussão de ocorria. Viu aqueles seres tão iguais, opinando a mesmíssima coisa, sem nenhuma profundidade real. E sorriu. Um sorriso suave e superior. Um sorriso leve e pintado de certo desprezo irônico.
Olhou pelo vidro da porta e admirou as folhas verdes que balançavam, entreabrindo os lábios, como uma pequena criança observado um objeto colorido e chacoalhante. E dessa vez sorriu de forma boba, provavelmente lembrando de algo doce. E lá estava ela, sentada, perdida em sua própria mente; estranha, anormal, feliz.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Fazendo um bom proveito

Dedico este conto a Karoline Paiva, vulgo Kekinha. :D


A escuridão já havia tomado conta da cidade, e ela ainda estava sentada naquela mesma cadeira, segurando sua lapiseira, gastando grafite, resolvendo cálculos matemáticos. Acima de sua cabeça havia uma estante, cheia de livros paradidáticos perfeitamente organizados. O quarto todo era organizado e arrumado, mas tão sem vida; sem personalidade.
Lara parou de estudar às 19h para jantar, e voltou a estudar em seguida. Foi dormir às 22h, logo após organizar seus materiais escolares.
A rotina de Lara repetia-se dia após dia, durante todos os seus anos escolares. Sempre estudando em excesso, tirando notas altas em consequência de grande esforço e abdicando de sua vida social. Era uma certinha nata, nunca fizera nada de errado ou excitante. Fora certa vez a uma festa, mas se sentiu deslocada e cercada de vagabundos irresponsáveis.
Desde que Lara entrou no ensino médio, sua vida se voltou para o vestibular. Não fazia nada além de estudar. Sua meta era entrar no curso de medicina. Não que fosse seu sonho ou que tivesse afinidade, mas era o que dava dinheiro, era o que todo mundo dizia ser bom, então ela faria.
Havia uma garota na classe de Lara que a irritava. Tirava notas baixas, mas não ligava. Tinha um argumento incrível, mas não se esforçava para expressá-lo. Ela precisava de horas no espelho, treinando falas que parecessem intelectuais, mas aquela garota... aquela vagabunda irresponsável. “Não vai ser ninguém na vida” pensava.
Faltavam apenas duas semanas para o vestibular, e Lara não media mais horários de estudo. Toda hora era hora de estudar. Estudou, estudou, estudou. Sua vida dependia disso, na sua concepção. Odiava todas aquelas matérias, não era inteligente, mas se esforçaria até criar calos mentais para conseguir. Para ser alguém na vida.
Finalmente, chegou o dia do vestibular. Lara terminara de estudar às 21h no dia anterior, para conseguir dormir bem. Não conseguiu. Virou de um lado para o outro na cama e acordou cedo demais. Resolveu revisar todo o assunto até a hora de sair.
A mente de Lara estava completamente ocupada pelo vestibular. Enquanto caminhava em direção ao local da prova, relembrava todos os nomes complicados de Biologia e todas as fórmulas de Física. Estava tão concentrada nisso que, ao atravessar a faixa de pedestre, teve tempo apenas de vislumbrar o carro que se chocou fortemente contra ela, antes de cair no chão e sua visão escurecer. Logo, seu raciocínio parou. Logo, seu coração também parou. O sangue escorria pelo asfalto, e pessoas observavam com espanto.

Pobre garota.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Marie no País das Maravilhas

– Quer um doce, garota? – foi a última coisa que Marie ouviu antes daquele mundo colorido e abstrato surgir diante dos seus olhos. As cores tão vívidas materializadas em pessoas que derretiam; pessoas que olhavam-na de soslaio. Alguém – ou melhor, algo – se esbarrara nela, e seu corpo produziu tal formigamento desesperador, fazendo com que ela se abraçasse assustada, alisando os braços como se sentisse frio. Os olhares continuavam sobre ela: era o centro das atenções.
Marie olhava para os lados freneticamente, sentindo uma paranóia brotar em si, suspeitando de todos ao redor.

Já amanhecia quando Marie saiu daquele local, e o sol parecia um enorme cometa vindo em sua direção. A música amplificada ecoava dentro de sua cabeça, quase fazendo seu corpo vibrar. Caminhava perdida por aquelas ruas maravilhosas, onde ônibus voavam e pessoas flutuavam momentaneamente a cada passo dado. Enquanto caminhava, avistou um canteiro de flores que dançavam e quis rir.

Depois de vagar por estas ruas iverossímeis, parou em frente a um prédio de formas geométricas variadas, que parecia meio inclinado. Adentrou o local e prostou-se no interior de uma caixa de metal gélido, e flutuou em movimento uniforme, sentindo o ar congelante tocar sua pele como neve. Ao sair da caixa, chutou um objeto estranho e, deste, uma tsunami surgiu, parecendo inundar tudo. Suas pernas pesavam pela água que molhava sua calça, e então ela atravessou uma porta. Chegou em um lugar que brilhava como um diamante, de um branco que cegava seus olhos. Cambaleou até um objeto cheio de insetos que se moviam incessantemente e caiu, adormecida.

Cinco horas mais tarde, Marie acordou com grande desespero. Os insetos ainda estavam lá, e ela não aguentava mais. Foi até a janela e projetou o corpo para fora. Aquele mundo colorido e abstrato estava lá, piscando e se movendo. Mas, de repente, começou a parar. Como uma câmera que muda do vivid para o calm, as cores começaram a se tornar mais opacas, e as coisas estavam parando de flutuar. Finalmente sentiu os pés no chão, e os insetos voltaram a ser bolinhas pretas em um sofá branco. “Ah, graças a Deus” pensou. O efeito do LSD finalmente havia passado.

domingo, 16 de agosto de 2009

O troco

Ela estava cansada daquilo tudo.

- Ana, Ana! - chamava o homem embriagado. Ana levantava-se da cadeira e ia até o quarto. - Ligue a tv pra mim.
Ana ligava a tv e voltava a sentar na cadeira. Logo, o homem chamava de novo.
- Ana, Ana! Venha aqui.
E Ana ia, dessa vez para lhe dar o controle remoto. Quando ia saindo do quarto, novamente:
- Ana, Ana! Mude o sentido das persianas.
E Ana mudava, e voltava a se sentar.

Era sempre a mesma coisa. Ele bebia, deitava-se na cama, e começava.
- Ana, Ana!
Faça isso, faça aquilo, como se sua filha fosse sua escrava, como se ela devesse algo àquele alcóolatra maldito.

Ao acordar-se, no dia após embriagar-se, o homem correu para o banheiro para vomitar. Vomitou como se rejeitasse todo o seu organismo. Então, sentiu aquela pontada forte no coração. Caíra de joelhos, segurando o peito, e vendo as imagens se fundirem e se separarem, numa vista que falhava.
- Ana, Ana! - chamou, como de costume. Ana apareceu em sua frente, olhando-o com indiferença. - Me ajude! - suplicou, com a vista escurecendo.
- Não - Ana respondeu, logo em seguida virando-se de costas para seu pai, que morria.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Desfoque

Há uma vela de cera amarelo claro, esta envolvida por um plástico que aparenta certa resistência. A chama não emite muita luz, se for relacionar ao tamanho da vela - de corpo largo e comprido. Porém, a chama emite brilho o suficiente para iluminar; um brilho amarelo, este mais escuro e impactante que o do corpo, o qual pode ser focalizado apenas o centro, pois é delineado de forma desfocal, do mesmo tom de amarelo, que parece espalhar-se ao redor do núcleo da chama.
O calor aquece e derrete a cera, porém, esta não escorre pelo corpo da vela, pois, por este ser largo, a parte derretida acaba retida entre as bordas secas e ainda compactas.
A chama balança um pouco, sem regularidade, e causando um rápido piscar que, aos nossos olhos atentos, causa a impressão de que a chama irá apagar-se. A chama também exala um odor, não muito forte, nem suave. Algo como o cheiro dos incensos, porém menos doce. Um cheiro salgado, que quase me faz sentir seu sabor.
A chama começara a ficar menos visível, à medida que a cera derrete e o pavio queima, e o fogo desce para um nível mais baixo, e fica mais escondido, em caso das bordas que ainda envolvem a cera e, consequentemente, a amarela e meio desfocada chama.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Dores e Amores

Ele sentia a dor. Alan Lightman sentia uma dor profunda, como se mãos esmagassem seu coração. As mãos dela, talvez. Por quê?, se perguntava. Porque não podia ter uma felicidade contínua? E mais importante: por que não conseguia parar de se ferir, parar de se castigar ao fitar aquela foto e quase sentir o filete de sangue escorrer por seu coração despedaçado? Tinha sido um amor fatal. Provocante, apaixonado. Aqueles cabelos ruivos respingando no sofá, aquele sorriso torto tão sedutor que brotava de seus lábios à medida que aquelas mãos apertavam as suas. Aquele mero calor de suas mãos entrelaçadas... aquelas mãos que agora te feriam. Por quê? Por que lhe doía tanto se as lembranças eram tão boas? Era simples. Havia perdido tudo aquilo.
Aquela casa. O refúgio deles. Um local abandonado, apenas com uma janela a deixar-se penetrar pelo sol. Da janela, podia-se ver uma enorme árvore caída, tão morta. Mas eles estavam vivos. Aquela chama estava viva e forte. Agora ela o queimava. Lembrava-se da noite que passaram no topo de uma montanha, tendo apenas um ao outro. O vento batia em seus rostos e fazia esvoaçar aqueles cabelos ruivos. Era noite de lua-cheia, mas ela era o seu sol.
Alan saiu por um momento de seus devaneios, percebendo-se no banheiro do estúdio, com uma torneira já a algum tempo aberta. Fechou-a e fitou seu reflexo no espelho. Fitou aquele rosto cansado. Não podia continuar assim. Precisava seguir em frente.
- Eu te amo, Alan - dissera ela certa vez. O calor daquelas palavras o fez acordar. Prescisava viver, prescisava seguir. Mesmo que ela nunca mais estivesse ali, aquelas palavras existiram e, pensando agora, isso bastava. Mesmo que ela tivesse sido o seu sol, no universo existem milhões de estrelas.